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Jubilado

por Elves Cunha

Aquela coceira era insuportável. Eu mal conseguia me segurar, esfregando as pernas uma na outra debaixo da mesa enquanto tentava ouvir o que a coordenadora do meu curso dizia. Parecia que pulgas me mordiam do Oiapoque ao Chuí. Caralho!

— Lucas, você está me ouvindo?

Não.

— Sim! Continue, professora, por favor.

— Como eu ia dizendo, seu prazo estourou de novo. Se você não entregar o TCC até o fim da semana, infelizmente estará jubilado. E você sabe o que isso significa, não é? — ela me olhava com pena, e um pouco de nojo, ao perceber a vermelhidão que tomava o meu pescoço — Olha, seria bom você ir ao médico ver isso aí.

Na verdade, a partir de segunda-feira teria que ir ao veterinário. Agradeci à  coordenadora e saí do escritório. Andei a esmo por entre os prédios da UFPA, sentindo o cheiro de café frio. Os copinhos descartáveis abarrotavam as lixeiras do campus e, à medida que meu prazo final se aproximava, mais longe eu conseguia farejar-los.

Passei pela esquina do bloco de salas de aula do “básico” e vi um cachorro preto, parrudo, lambendo as genitais de um vira-lata caramelo. Ele parou o que fazia e olhou para mim com a língua de fora. Parecia sorrir.

— Não julga antes de experimentar, mano — disse o cachorro.

Tratei de apertar o passo em direção ao RU, enquanto ele falava cada vez mais alto.

— Se tiver afim, me procura antes de te castrarem! — e soltou uma risada sonora junto com o caramelo.

Ao chegar na fila para o almoço, vi que estava lotada. O final já estava longe, próximo do primeiro portão. Os calouros apareciam em bandos e furavam a fila quando avistavam um rosto conhecido. Resolvi furar também. Percorri toda a extensão da fila, na esperança de encontrar alguém e, por sorte, vi André. Ele cursava ciências sociais, assim como eu, mas era dez anos mais novo. Entrou há quatro anos e já estava no último semestre. Aluno exemplar.

— Fala, meu prezado! — cheguei junto, dando um abraço nele. André deve ter sentido meu fedor, pois rapidamente se desvencilhou.

— Tá fazendo o que aqui, cara? Pensei que tu tivesse se formado ano passado.

— Pois é, me enrolei. Tenho até o fim da semana pra entregar o TCC.

— Cuidado pra não virar cachorro! — riu de nervoso. Meus pelos faciais com certeza o deixaram desconfortável — Vou defender o meu agora quarta-feira. Quer assistir?

— Claro. Qual o tema?

— Uma revisão bibliográfica sobre etnologia indígena. Vou falar sobre multinaturalismo e essas paradas. Foi o que consegui com o prazo — Só podia ser sacanagem com a minha cara. Minha gastrite gritou. Perdi a fome.

Começou a cair um toró e eu já estava quase na entrada do restaurante, mas resolvi sair. Aquela atitude do André, de concluir o curso tão facilmente quanto respirar, me irritava. Ou será que era mesmo algo simples? Será que o problema era só comigo? Olhei para uma matilha de cães correndo na chuva. Não, eu não era o único.

A coceira piorava. Meus braços já estavam ardendo de tanto que eu coçava, e só percebi que tinha me cortado quando senti o cheiro de sangue. A chuva acabou vindo bem a calhar, então fui esfregando o corte até parar de sangrar.

Continuei andando pela pista, atraindo os olhares dos estudantes que se abrigavam debaixo de algum teto. Todo mundo de humanas sabia quem eu era. O “Lucão”, barbudo que está em todas as festas e em nenhuma aula. Reprovando semestre após semestre, por falta, por nota, por ficar na beira do rio fumando e tomando catuaba. Era isso que todos aqueles olhinhos fodidos, lá longe, imaginavam quando estavam fixos em mim. Nas sextas e nos finais de semana, porém, eu sou o cara bacana, “gente fina”, que todo mundo quer chamar para farrear. Durante os dias úteis, sou inútil.

Atravessei a pista e fui até o coreto perto do Vadião. Um grupo se reunia ali. Enquanto um tocava um chorinho no violão, o restante cantava. Uma buchudinha passava de mão em mão.

— Fala, Lucão! Senta aí, mano. O senhor aceita? — me ofereceram um copinho de plástico cheio daquele líquido escuro.

Quem eu quero enganar? Sentei, para um último gole. A roda continuou, como se eu não estivesse lá. Naquela noite, bebi em silêncio. Talvez eu tenha cometido um erro de percurso. Vários, na verdade. As horas passaram. A roda diminuiu. A música acabou. Minha vista estava turva e, quando dei por mim, estava sozinho. Levantei e, cambaleando, brindei à minha incompetência.

A universidade estava quase vazia. Andei sem rumo por ela, como um fantasma. Vi os últimos alunos indo em direção ao terminal de ônibus. Cumprimentei Seu Marcos, o último segurança concursado do campus. Em breve, ele vai se aposentar e o cargo estará extinto.

Parei ao chegar à horta universitária. Lá, acontecia a reunião dos eternos alunos. Estavam me esperando, sentados em círculo, alguns com a língua de fora, outros lambendo as partes. Me deram boas-vindas. A coceira parou.

******

A atenção quase nula dos alunos foi interrompida pelo som de arranhões na porta de metal da sala de aula. O professor ficou quieto e todos olhavam atentamente para a saída, até que a maçaneta virou e o cachorro marrom escuro adentrou o recinto.

Ele passeou por entre a mesa e as cadeiras até achar uma vazia, de assento estofado. A cadeira era velha e suja, mas quentinha. O cachorro subiu nela, sentou-se e olhou na direção do quadro. Ele balançou a cabeça, como se dissesse para o professor continuar. Todos da turma se entreolharam sorrindo, e o mestre, se sentindo orgulhoso pela primeira vez em muitos anos, prosseguiu.

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