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Piratas do Calypso

por Thyago S. da Costa

Em Belém, nos emaranhados da maior feira do Benguí, conta-se a história da rivalidade entre dois dos maiores comerciantes de produtos alternativos da cidade. Separados pelo rio negro do asfalto, disputavam cada afortunado que ansiava por novidades cinematográficas, disponíveis em dvds seis em um. A Batalha de Vendas de Velozes e Furiosos era passado; um embate colossal se aproximava. Essa é a história de Tonho e Careca, e de como Joelma trouxe a guerra até eles.

Tonho era um velho barrigudinho, vivia com uma camiseta vermelha desabotoada e um boné do Lula. Era manco e tinha um olho fechado pela cegueira. Sempre respeitado por seus subordinados, em especial Louro, seu braço direito. Todos os dias, cedinho, içava as velas azuis da barraca, espalhava as mercadorias e esperava Louro trazer as novidades do dia.

Na outra margem, Careca chegava depois. Jovem, com uma regata do Paysandu, short e havaianas. A primeira coisa que fazia era checar o mastro de sustentação da sua barraca. Apertava nós frouxos, esticava as cordas e contava o estoque. A quantidade de dvds de Godzilla vs Kong estava praticamente zerada. Ria sozinho pelo sucesso das vendas. Quando avistou Tonho, caminhando para atender uma cliente, logo gritou:

— Esqueceu o skate hoje, papudinho? — ria ao imitar o rival mancando.

— Vá pra porra, seu cabeça de sem teto! — Tonho mandava um cotoco — Me respeite, homi. Tenho idade pra ser teu pai!

No riso alto de deboche de Careca, Louro chegou aos tropeços com o carregamento. Careca ficou curioso, esticou os olhos ao notar uma certa euforia. Tonho tirava os pacotes do baú do tesouro e já gritava aos transeuntes por sua atenção:

— Chegou agorinha, minha gente! Venham relembrar todos os shows da Banda Calypso em um único DVD! — suspendeu um pouco o boné para olhar na direção de Careca. — Só aqui o freguês vai encontrar!

O pacotinho na mão de Tonho brilhava em ouro ao refletir as cores douradas da Banda Calypso. Custava dois reais, capa personalizada com várias Joelmas coloridas e diferentes, e um Chimbinha atrás segurando uma guitarra em chamas. Com mais um real, o cliente levava um remix da Banda Mastruz com Leite, Vol.10. Promoção era a alma do negócio, e nisso Tonho era Rei.

Careca aplaudiu a coragem do adversário. Sabia que o outro não teria munição suficiente para o que estava por vir. E por isso foi logo tirando duas caixas no porão da barraca. O vento estava a seu favor. Retirou pilhas de pacotes, segurando três ou mais nas mãos, e atirou o seu canhão:

— Alô, alô, freguês! Chegou pra você o novo show da Joelma na Aldeia Cabana! O maior show da carreira solo dela, agora pode ser visto no conforto do seu lar! — O ataque de Careca rompeu os cascos de Tonho; sua atenção foi roubada. — E só aqui, na Banca do Careca, você pode conferir! 

O fornecedor de Careca devia ser dos grandes. Os discos tinham adesivos personalizados, com um brilho de autenticidade. Joelma usava uma roupa preta, envolta em uma explosão que anunciava seu esplendor. Certamente dirigida por Michael Bay. Careca era um legítimo corsário.

— Mas que arrombado filho duma égua! — rosnou Tonho.

— Sim, arrombado filho duma égua! — repetiu Louro.

— Isso num vai ficar assim! Esse zé buceta vai andar na prancha! — Tonho procurava entre as gavetas pela próxima arma.

— Não vai ficar assim. Vai andar na prancha! — repetiu Louro, rindo pro nada.

O velho subiu, arduamente, num banquinho, quase caindo sobre a barraca. Segurava o boné e balançava eufórico:

— Até o meio-dia de hoje, qualquer DVD aqui na barraca custará um real! Quer os três Jão Wilk? Tenho aqui! Quer a gravação do Criança Esperança do ano passado, com o show lindo da Gabi Amarantos? Na hora!

A maré trouxe de volta os fregueses. Dessa vez Careca ficou surpreso, não contava com essa jogada. Mas não daria o braço a torcer. Ligou a caixinha de som, colocou o DVD premiado da Joelma, e no grito da cantora em “Cavalo manco, agora eu vou te ensinar…”, gritou mais alto:

— Aqui o limite de tempo não existe! Todos os DVDs por um real cada, pra sempre! — O tempo foi perfeito para a fala de Careca ser finalizada por Joelma no som máximo: “… em Belém do Parááááá!”

A barraca de Tonho estava afundando, suas armas estavam esgotadas. Aquele miserável não podia vencer, pensava. Mas antes que pudesse estruturar um plano de contra-ataque, as bandeiras da esquadra municipal tremularam no horizonte: o Rapa chegou. 

Louro jogou o máximo de mercadorias dentro das caixas e correu. Tonho tentou apanhar alguns pacotes, mas a perna falhou. Esparramado no chão, com medo de ser pisoteado, viu os oficiais desmantelarem os focos de resistência e sepultarem as barracas ao redor. Sentiu então alguém o puxar pelo braço:

— Bora, doido! Levanta! Os homi vão quebrar tudo! — era Careca, com uma mochila nas costas se esforçando para levantar o velho.

Com ajuda de seu nêmesis, Tonho conseguiu levantar e juntos fugiram do repentino ataque. Mesmo relutante, agradeceu a Careca. Talvez, no fundo, ele fosse uma boa pessoa. Só talvez. Ainda era um miserável ladrão de freguês. Mas, por enquanto, poderiam ter paz.

No dia seguinte, Careca chegou mais cedo que o normal; até mesmo ajudou Tonho a içar as velas de sua barraca. Não houve piadas e chacotas. Não teve competição alguma naquele momento. As águas estavam calmas para ambos. 

Foi só sentar, para coçar a cabeça, que Tonho foi abordado por um rapaz, um tanto alterado:

— Eu quero trocar esse DVD — dizia ao balançar um exemplar de Liga da Justiça do Zack Snyder.

— Não tá pegando? Chegou ontem, impossível! — Tonho não esperou o rapaz responder e foi logo colocando o disco no aparelho DVD para testar o dito cujo — Deve ser problema lá no teu leitor… Olha só, apareceu a logo, ta funcionando perfeitamen–

As cenas que apareceram na tela, alinhadas com o nome “Operação Leva-Jato”, congelaram o velho. O rapaz, envergonhado, pedia para que desligasse a TV e trocasse o bendito disco. Lá do outro lado, Careca se espocava de rir, e chamou o rapaz para comprar em uma barraca onde, de fato, os filmes correspondiam às capas.

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