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Serviço Essencial – Noite Final

Doutor, a gente se fodeu. O único jeito de entrar em contato foi mandando essa carta. 

Depois de sair da consulta, fui até à casa da Naiara pra me preparar. À noite, nos reunimos e traçamos as trajetórias para dividir as equipes. Armando montou times de três motoboys, que deveriam ir pra cada refúgio de um sanguessuga desgraçado e atacar sem piedade. O plano era simples: invadir e incendiar os covis. Cada um levaria uma arma de fogo pro caso dos vampiros tentarem fugir. Todos estavam muito nervosos e um rapaz de uns dezenove anos próximo a mim disse que nunca tinha visto um vampiro. Lembra da primeira vez que conversamos, Doutor? Pois é, ele fazia a mesma careta que a sua. Armando explicou que por fora eles pareciam humanos, mas que assim que percebessem que tinha algo de errado, mostrariam as presas nojentas. Ele nos disse o modo mais rápido de matá-los: fogo. Queimam que nem papel. 

Um outro garoto perguntou o que fazer se encontrassem outras pessoas nos covis. Armando foi categórico: matar lacaios dos chupas era efeito colateral, pois foram eles que escolheram essa vida. Ninguém na sala questionou Armando. Mas porra, Doutor, eu fiquei cabreiro. Eu era um “lacaio dos chupas” há pouco tempo atrás. Se não tivesse conhecido a Naiara talvez morresse pelas mãos dessa galera. 

Tínhamos dez endereços diferentes e um deles era o dos “cabeças”. Pelas anotações da Matilde, era um casal de nome Ramon e Helena. Eles eram uma espécie de rei e rainha dos vampiros da cidade e todos os obedeciam, inclusive o fodão do Verdugo. Tomei um susto quando Naiara disse que eles seriam os alvos dela, mas respirei fundo e pedi pra ir junto. Finalmente eu estava tomando uma atitude corajosa e, se tudo desse errado, queria estar perto dela. Armando me apoiou, apesar dos protestos dela. Eles precisariam de toda ajuda possível.

Depois de acertarmos os detalhes, começamos a abastecer garrafas de vidro com gasolina. Cada motoboy recebeu uma grade e guardou na bolsa de entrega. Aquele tanto de combustível custou uma pequena fortuna e Armando torrou basicamente todas as economias naquilo. Ele me entregou uma pistola, mas lembrei do fiasco com o Tonho e recusei. Naiara me beijou e senti que ela me protegeria de qualquer coisa.

A operação começaria às cinco da manhã em ponto, quando os sanguessugas estivessem encerrando suas atividades e se preparando pra dormir. Enquanto esperava, subi pro quarto de Naiara. Ela me seguiu. Deitamos na cama. Ela percebeu que eu estava tremendo. Era impossível disfarçar, doutor. Eu a abracei. Não queria que esse momento acabasse nunca. Tive medo de morrer e perder a oportunidade de olhar nos olhos dela novamente. Ela disse que estaríamos juntos mesmo se morrêssemos e fez uma piada envolvendo sexo fantasma.

Quando deu a hora, nos dirigimos pra rua. Cada um subiu na sua moto, mas Naiara e eu entramos no carro de Armando. O garoto que estava receoso mais cedo entrou no banco de trás comigo. Perguntei o nome dele. Se chamava Juninho. Apertei a mão dele com força e disse que iríamos voltar vivos com certeza. Armando deu a partida no motor. Senti um frio na barriga. 

Junto do nosso carro, iam mais dois motoqueiros. Nós mantivemos certa distância deles, pra, caso azedasse a situação, a gente pudesse dar a volta mais rápido. A casa dos cabeças era na Cidade Velha. Pra nossa sorte era um casarão no estilo português. Mas o portão automático ia dificultar as coisas. Juninho tirou as ferramentas da mochila e disse “Relaxem, eu fiz Senai”. Rimos, talvez pelo nervosismo.

Estacionamos o carro na esquina e o moleque saiu. Ele se esgueirou pelos cantos até chegar no portão e começou a trabalhar. Em poucos minutos, o portão abriu e ele fez o sinal de legal. Não ouvimos nenhum alarme.

Os motoboys desceram das motos e entraram no pátio da casa. Armando pegou uma garrafa de plástico com um líquido vermelho escuro dentro e tomou um gole. Ele nos ofereceu um pouco, mas recusei. Não queria mais sangue de vampiro no meu corpo. Além do mais, a dose mensal que tomei de Matilde ainda estava ativa, dava pra sentir. Naiara tomou metade da garrafa sozinha e os olhos dela se acenderam.

Tiramos as armas e as grades de cerveja do porta-malas e seguimos o mais rápido e silenciosamente que pudemos. Os três estavam ao lado da porta da frente, nos esperando pra invadir. Armando começou a contar até três e tudo ficou em câmera lenta. Eu suava frio, doutor. Tive medo de deixar escorregar as duas garrafas cheias de gasolina que tinha nas mãos. Quando a contagem terminou, Armando derrubou a porta com um pisão. Entramos correndo e arremessamos as garrafas nas paredes e nos móveis. Quando as mãos ficaram vazias, pegamos mais garrafas da grade e começamos novamente. Foi aí que dois seguranças apareceram e começaram a trocar tiros com os motoboys.

Naiara ficou no centro da sala de estar e seus olhos ficaram dourados ao mesmo tempo que os braços se tornaram tochas de chama branca. Ela era como um lança-chamas humano. Apontava pra uma direção e o fogo atacava como um jato. Era aterrorizante de ver aquilo. A gasolina se inflamou e rapidamente a sala se incendiou. O fogo foi se espalhando por todas as paredes, por conta da madeira. O fogo também assustou os seguranças, dando tempo suficiente para serem abatidos a tiros. Ouvimos gritos vindos de cima. Armando deu um grito de guerra.

Os rapazes recarregaram as armas e eu levantei mais duas garrafas. Da escadaria central, um casal desceu correndo. O homem, Ramon, era alto, branco que nem cera, e tinha os cabelos bem longos e pretos. Não sei porque, mas o filho da puta me lembrou a Matilde. A mulher tinha a pele escura,o cabelo escorrido e era ainda mais alta que ele. Ambos tinham os olhos vermelhos como sangue.

A mulher, provavelmente a tal de Helena, gritou furiosa. Em um piscar de olhos, ela se movimentou da escada até onde tava o Juninho e atravessou o peito do moleque com um de seus braços. Pois é, eu menti pro garoto. O sangue jorrou do torso dele e pintou a camisola prateada dela de vermelho. Juninho gritou de uma forma medonha e, antes de morrer, tacou a garrafa de gasolina na cabeça da vampira. Aquela cena, doutor, me abriu os olhos pro que eu deveria fazer. Me virei, procurando Ramon, e vi que o puto já havia arrancado a cabeça dos outros dois motoboys, e avançava na direção de Armando, que estava caído no chão descarregando todas as balas no peito do monstro. Os passos decididos do vampiro não paravam, mas o fato de ele estar distraído me deu uma chance. Arremessei minhas duas garrafas nas costas dele e gritei por Naiara. Ela rapidamente olhou ao redor e, antes dos vampiros se voltarem para nós, gritou pra eu me jogar no chão. 

Quando estava de cara no piso, ouvi uma explosão. O senhor deve saber como Belém é quente, né doutor? Mas nada se compara àquele fogaréu dos diabos. Tudo o que estava na altura da cintura da Naiara pra cima foi incinerado. Os gritos de dor do casal vampiresco e o calor absurdo me fizeram apertar a cabeça contra o chão com força. Se eu tivesse mijado nas calças, certeza que o mijo teria evaporado. Quando levantei os olhos, Armando estava são e salvo na minha frente, pois não havia saído do lugar, mas o resto da casa chamuscava. Naiara me ajudou a ficar em pé e pude ver o corpo encarquilhado do Ramon pregado na parede. O que sobrou de Helena se arrastava na direção da escada. Ela gemia baixinho, parecia chorar. Mas a dor da carne em brasas, que devia sentir, não a impedia de continuar o trajeto. Antes de chegar ao primeiro degrau, parou de se mexer.

Então ouvimos o choro do bebê, vindo do andar de cima. Sim doutor, eu só me fodo. Ficamos paralisados, sem saber o que fazer. As chamas tomavam a casa rapidamente. Eu e Armando decidimos ir embora, mas Naiara nos impediu. Ela disse que se tivesse mesmo um bebê na casa e ele morresse, seria nossa culpa e isso nos tornaria iguais aos monstros que estávamos caçando. Eu estava com medo e Armando com raiva, mas fazia sentido. Corremos pra escada, pulando sobre as chamas, seguindo a liderança dela. 

Chegamos no andar de cima e não sabíamos de qual dos vários quartos vinha o choro. Fomos arrombando as portas uma a uma, até que o encontramos. Era um quarto todo decorado com anjos, cheio de brinquedos derretendo e um berço na parede mais distante. Curioso como aquele “paraíso” parecia um inferno maldito em meio às chamas. Naiara pegou o bebê no colo e nos apressamos pra sair. Chegar ao lado de fora foi quase tão mortal quanto enfrentar os vampiros, mas conseguimos. Infelizmente não pudemos resgatar o corpo de nossos companheiros. Entramos no carro e Armando pisou no acelerador.

Dentro do veículo, Naiara fez o bebê dormir. Aparentemente estava saudável, apenas um pouco sujo de cinzas. Começamos a discutir as hipóteses do porquê de aquela criança estar lá. Seria uma vítima do casal? Eles eram tão pervertidos assim pra se alimentar de recém nascidos? Mas o quarto era cuidadosamente preparado, como se fosse realmente um filho…Fosse o que fosse, não adiantava especular naquele momento. Tínhamos assuntos mais urgentes pra resolver.

Quando chegamos na casa de Naiara, o sol já tinha nascido. Poucas motos estavam lá na frente. Entramos e alguns estavam chorando. Outros muito feridos e um ou outro em estado de choque. Todos viraram em nossa direção quando perceberam o bebê. Armando pediu pra Naiara levá-lo pro quarto e começou a reunião. Cada um dos companheiros narrou brevemente sua batalha, falando sobre como mataram seus alvos e como perderam colegas. Apesar de o grupo ter sido reduzido pela metade, a ação foi um sucesso. Todos os alvos foram destruídos e pelo menos um componente de cada equipe voltou vivo pra contar história. Armando comemorou a vitória e os gritos de viva começaram a tomar a casa. A tristeza foi dando lugar a alegria e parecia que estávamos em uma grande festa. Confesso que tive um cadinho de esperança nesse momento, doutor.

Armando pediu silêncio e tomou a palavra. Era hora de todos sumirem da cidade até a poeira baixar. Agradeceu a todos pelos esforços e disse que aquilo não havia sido em vão. Todos bateram o punho no peito.

Foi aí que tudo desandou. 

Antes de arrumarmos nossas coisas pra sair, ouvimos a buzina de uma moto do lado de fora. Fui ver quem era. Era um entregador. Ele tinha um envelope quadrado fino em mãos e perguntou se eu era o Júlio. Respondi que sim e ele me entregou a encomenda antes de ir embora. Minha espinha gelou. Abri o pacote e tinha um CD dentro, sem nenhuma inscrição. Aquilo me deu um mal pressentimento. Subi pro quarto de Naiara, expliquei a situação bizarra e pusemos o CD num notebook. Quando o drive abriu, só tinha um arquivo de vídeo. Nos olhamos por um instante e dei play.

Tá sentado, doutor? Porque essa é de foder. A imagem de Matilde sorrindo surgiu na tela, sentada atrás de uma mesa grande de madeira. Em cima da mesa, estavam as cabeças de Fábio, Dinilza e o filho dela, Carlos. As expressões nos rostos deles eram de terror e estavam muito machucados, como se tivessem sido torturados antes de serem mortos. Meu estômago revirou e relembrando agora ainda passo mal. Consigo lembrar das exatas palavras dela:

“Júlio, quero agradecê-lo pelo favor que me fez. Graças a vocês e seus amigos, consegui me livrar de todos os meus rivais na cidade, inclusive do meu irmãozinho arrogante, Ramon. Agora posso tomar meu lugar de direito na liderança da minha espécie, sem oposição. Você não achava mesmo que eu não tinha percebido o esquema de vocês, não é? O sangue que eu os alimentava mensalmente não era apenas para mantê-los saudáveis e fortes, mas para que eu pudesse monitorar vocês mais de perto. Confesso que me diverti nesses últimos meses e até senti um pouco de pena de ter que matar meus antigos empregados. Mas é como dizem: negócios são negócios. Te vejo no inferno.” 

O vídeo terminou e minha pressão despencou. O teto começou a girar e, se não fosse por Naiara, eu teria caído no chão. Tudo não passou de um jogo de poder pra maldita da Matilde. Ela me manipulou desde o ínicio e caímos na armadilha. Naiara correu para a janela e disse um palavrão quando avistou aquele pequeno exército de vampiros se aproximando da casa. Eu ainda estava tonto, tentando processar o vídeo.

Ela tentou correr para o andar debaixo pra avisar os rapazes, mas não foi rápido o suficiente. Balas começaram a atravessar a casa e ouvimos as janelas do andar debaixo explodirem, assim como os gritos do pessoal. Quando os tiros cessaram, me movi até a janela e vi que havia uns quinze homens armados com fuzis e metralhadoras do lado de fora. Todos usavam capuzes e óculos escuros, menos um deles. O Verdugo. Ele era o mais alto e parecia não se incomodar nem um pouco com o sol. O bebê começou a chorar e Naiara pôs ele nos meus braços.

Dei um beijo em Naiara e descemos a escada. A sala tinha sido totalmente perfurada pelos tiros. As janelas estavam só os pedaços e a porta cheia de buracos. A maioria dos motoboys estavam no chão, mortos, e Armando sangrava muito, encostado na geladeira. Fomos até ele, que ainda segurava uma pistola. Naiara o ajudou a se levantar. O sangramento não parava e ficou óbvio que ele iria morrer ali. Percebendo que não havia alternativa, ele pediu para abrirmos todos os bujões de gás da cozinha industrial e fugíssemos pelos fundos. Ele iria desferir um último golpe nesses parasitas.

Naiara chorava, mas fez o que ele pediu. Nos despedimos pela última vez de Armando e ele me disse pra tomar conta da irmãzinha dele. Respondi que ela que ia cuidar de mim e ele sorriu. Um sorriso cheio de sangue, mas tinha paz nos olhos dele. Saímos pelos fundos e entramos na garagem. Fomos pra dentro do carro e aguardamos o sinal. Quando ouvi o grito de Armando, acelerei tudo o que pude e atravessei o portão de madeira da garagem. Vi pelo retrovisor o Verdugo tentando correr pra fora da casa, um instante antes de tudo explodir. Naiara desabou chorando com o bebê nos braços. 

Será que sou um covarde, doutor? Fizemos a coisa certa? Muita gente morreu por culpa minha. Isso é um fato. Só me resta agora cumprir o último desejo de Armando e manter Naiara e essa criança seguras. Por isso, doutor, tô saindo da cidade. Não posso dizer pra onde eu vou e nem sei se um dia vou voltar. Naiara foi contra, mas resolvi me arriscar e enviar essa carta antes de sumir por um motivo:

Se eles sabiam tanto sobre mim, devem saber sobre o senhor também. 

Se cuide, doutor.

Até nunca mais.

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