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Serviço Essencial – Segunda Noite

Bom dia, doutor. Como estou? Tentando seguir, noite após noite. As coisas ficaram mais complicadas, então decidi começar a tomar o remédio. Dá muito sono. Fico “nublado” o resto do dia. Tem sido uma vantagem na minha linha de trabalho, se é que o senhor me entende. Como as coisas têm se complicado? É verdade, faz um mês desde a última vez que vim aqui.

Depois da primeira semana, o trabalho ficou mais leve. Pelo visto, os sanguessugas são discretos fora dos feriados sangrentos deles. Só precisamos buscar uma vítima fatal. Parece que a vítima conseguiu quebrar o efeito anestésico que a mordida causa e tentou revidar, aí o cliente perdeu as estribeiras no meio da violência. O negócio foi feio. Precisamos vasculhar alguns metros pra encontrar todos os pedaços do infeliz. Nessa noite tomei o dobro da dose pra conseguir dormir. 

Durante as minhas folgas, fiquei viciado naquele aplicativo de encontros. Passava os dias arrastando meu polegar pro lado, com a esperança de que alguma daquelas dezenas de mulheres olhasse meu perfil e resolvesse pagar pra ver se eu valia a pena. Consegui três encontros. O primeiro deles foi um saco. Não teve muita conversa. Fomos pro meu quitinete depois de tomar umas cervejas e partimos pra ação. Sabe como é, depois dos vinte e cinco anos ninguém sai de casa se não for pra selar a parada. Imagina minha surpresa quando o sansão não subiu. Ela pediu um carro e foi embora desenganada. Tenho certeza que a culpa foi do remédio.

No segundo encontro, levei a moça ao cinema e depois pra lanchar. Nos primeiros cinco minutos de conversa, ela desistiu de mim e ficou o resto da noite no celular. O fato de eu ter parado com a dose não me ajudou. Fiquei muito nervoso e saí sem pagar a conta. Essa sim deve me odiar. Já tinha desistido de conseguir sair com alguém, quando o Fábio me chamou pra ver a banda dele tocar numa sexta feira. Não costumo sair com colegas de trabalho, mas como não tinha nada melhor na agenda, confirmei.

O bar que fomos ficava ali perto da Avenida Três Corações, na Cidade Nova. Era uma casa adaptada. As mesas ficavam do lado de fora, no gramado, ao ar livre. Tinha muitas árvores ao redor. Era bem confortável ali. Fábio chegou, junto com outros dois rapazes. Sem o uniforme, ele parecia outra pessoa. O cabelo afro armado, a camiseta cheia de patches bordados, os braços tatuados, a calça camuflada e bota o transformavam num legítimo vocalista de thrash metal. Os outros dois também tavam vestidos a caráter.

— Égua, moleque! Aí sim!

— Pensei que tu não vinha. Esse é o Pedro e o Beto. — Cumprimentei os colegas de banda de Fábio. — Ajuda a gente a tirar os instrumentos do carro, bora.

Servi de ajudante durante a primeira hora, instalando os equipamentos e as caixas de som no pátio do bar. 

— Essas coisas não são muito grandes pra esse bar não? 

— Quanto mais barulho melhor. É a nossa marca — disse ele, sorrindo.

A trabalheira me deu muita sede; entornei duas cervejas num piscar de olhos. Comecei a ficar legal. De uma hora pra outra, o bar tava lotado. As mesas já tinham tomado todo o gramado e não parava de chegar gente. Todo mundo de preto, com camisas de banda. As mulheres com cabelos coloridos e all star nos pés. Comecei a me empolgar de ter vindo, mas devia ter deixado a camisa do papão em casa. Antes do show começar, tropecei numa moça e derrubei a cerveja dela no chão. A garrafa não quebrou, mas o líquido se espalhou por toda parte. 

— Puta merda! Foi mal. Bora lá que eu pago outra pra ti.

— Foi mal nada. Vai ter que pagar duas. Uma pra repor essa aí e outra por danos morais. — Ela ficou um tempo observando minha reação de embaraço, e então continuou. — É brincadeira. Só que não. Quero duas mesmo. — Parecia uma piada, mas resolvi não arriscar. Fomos até o bar e pedi as cervejas.

— Meu nome é Naiara. Você trabalha pra banda? — Relaxei um pouco. Quando uma garota te chama de “você”, geralmente é um bom sinal.

— Não, eu sou amigo do vocalista. Mas é a primeira vez que vou ver eles tocando — Quando percebi ela já tinha secado a primeira cerveja.

— Você não parece ser da “cena”. Pelo menos torce pro time certo. 

— Quem me dera. Torcer pro papão é só sofrência. 

Senti que o papo ia começar a engrenar, quando a música começou. Era alta pra caralho. O copo vibrava com as batidas da bateria. Naiara correu pra próximo do palco pra ver melhor a banda. Demorei um pouco ali parado, pensei que tinha perdido minha chance. E pra minha surpresa, ela veio me buscar.

— Não esqueci que tá me devendo mais uma cerveja! — Ela gritou no meu ouvido. Senti o rosto dela roçar no meu. Tinha uma franja meio torta e o cabelo todo picotado. Olheiras bem fundas e um nariz muito pequeno. Não vi a boca dela, apenas me inclinei pra frente e a beijei. Fiquei de olho aberto durante o beijo, sem acreditar no que tava fazendo, olhando o brinco prateado dela. Era um crucifixo.

A música foi ficando mais rápida e agressiva. A galera fez uma roda e começou a se empurrar. Naiara me jogou no olho do furacão e acabei caindo no vuco-vuco. Alguém me deu a mão e fiquei em pé novamente. Entendi. Apesar de parecer agressivo, era uma vibe de respeito. Comecei a empurrar quem me empurrava, sorrindo e seguindo o fluxo da roda. Me excedi e acabei dando um pontapé em alguém. Depois disso, outra pessoa se vingou e me derrubaram novamente. Saí zonzo da roda e encontrei Naiara de novo. Ela ria. 

Nojo Total. Um nome bosta pra uma banda. Naquela noite não encontrei mais o Fábio. Eu e Naiara ficamos bem bêbados e saímos andando pelo bairro, tropeçando um no outro, nos beijando e falando alto. Gostei muito disso. Quando chegamos na casa dela, eu tava morrendo de vontade de mijar. Ela derrubou o molho de chaves umas três vezes antes de acertar o buraco da fechadura. Quase não deu tempo de segurar até entrar no banheiro. Depois do alívio, pude prestar atenção na casa. Era altos e baixos, tinha livros jogados por todos os cantos e um monte de louça suja espalhada pelas mesas e sofá. Sem TV.

— Meu irmão tá viajando. Se ele tivesse aqui já tinha me matado por bagunçar a casa desse jeito. — Mal terminou de falar, arremessou na minha cara a saia que tava usando. Pude ver as pernas dela correndo escada acima, me provocando. O resto não preciso falar né, doutor? Vamos dizer que foi minha noite de sorte do mês. Quando terminamos, ela foi tomar banho e fiquei explorando o quarto. Tinha posters de banda em todas as paredes e alguns livros de ocultismo ao pé da cama. Vela preta, caveira e o pacote completo. Fiquei imaginando se ela ficaria mais atraída por mim se eu dissesse que trabalho pra vampiros. Vi então um quadro da família. Ela e o irmão quando crianças, sentados num banco de uma praça. O pai e a mãe em pé. Não ouvi os passos dela.

— Só sobrou eu e meu irmão.

— O que aconteceu com teus pais?

— Minha mãe abandonou a gente e meu pai adoeceu depois disso. De lá pra cá, o Armando cuida de tudo.

— Ah, eu sei como é. Minha família é uma bosta também. Não conheci meu pai. Meu padrasto era um merda e minha mãe concordava com tudo o que ele fazia. Fugi de casa bem cedo. Pelo menos você tem o seu irmão.

Ela me abraçou por trás, ainda molhada do banho, e a toalha caiu no chão.

— Chega de histórias tristes. Teu trabalho ainda não acabou.

E me puxou de volta pra cama.

Na noite seguinte fui trabalhar ainda meio capenga da ressaca. O corpo todo dolorido. Naiara me deixou um monte de marcas. Apesar disso eu tava me sentindo bem pra cacete, como não me sentia há bastante tempo. Passamos o tempo todo trocando mensagens. Até desinstalei o aplicativo de encontros. 

— Se deu bem ontem né, safado? — disse Fábio. — Tu sumiste, nem consegui te achar. Quem é a gata?

— Sai fora rapaz. — mas não conseguia esconder o sorriso.

— Que cara de besta é essa? — Chegou Tonho com seu cigarro, todo sombrio.

— Agora pronto! Vão cuidar da vida vocês.

As próximas semanas foram selvagens. Usava todo meu tempo livre com Naiara. Ela cursa cinema na UFPA. Encontrava ela na universidade depois da aula. De lá, geralmente íamos pra algum bar lá por perto começar nossas “turnês”. De bar em bar até amanhecer. O final era sempre uma cama quente, sexo até cair a pressão seguido de vômitos no vaso sanitário (quando dava tempo). Eu chegava no trabalho só o bagaço, mas como a maré estava baixa, não importava tanto. O irmão dela estava sempre ausente, ou ela fazia questão de sair comigo nos dias em que ele estava ocupado, não sei. Ainda não o conheci. Sei que ele gerencia uma “dark kitchen” porque alguns dos amigos de Naiara trabalham pra ele. Pelo menos é o que ela diz. Também não conheci nenhum deles. Eu devia ter percebido que tinha alguma coisa errada; ela tava sempre sozinha. Mas era conveniente demais, não liguei.

Um dia, quando estávamos vendo um filme de terror B em casa, ela parecia distante, não prestava atenção no filme ou nos meus comentários.

— Aconteceu alguma coisa, Nai?

— Não, nada. — disse ela. — Julio, você já pensou que tem algo de sinistro rolando no mundo?

Estranhei a pergunta.

— Bom, só tem coisa sinistra rolando. Olha a situação do país. Nosso presidente é um bosta.

— Não esse tipo de sinistro. Digo, algo que não conseguimos ver. — Ela olhava fixamente pra palma da mão. Senti a temperatura dela aumentando.

— Acho que você tá com febre. — chequei a temperatura da pele novamente, mas já tinha esfriado. Fiquei imaginando se ela sabia de alguma coisa. Nai não tocou mais no assunto. Senti que algo ruim ia acontecer.

Não precisei esperar muito. Naquela noite, assim que Matilde entrou na sala de reunião, percebi que a merda tinha batido no ventilador. O rosto cadavérico dela me dava arrepios. Só o fato de ela estar no mesmo lugar que nós, fazia a temperatura despencar uns cinco graus.

— Estão todos descansados? Bom. O trabalho de hoje é fora do comum. Vou junto com vocês fazer a coleta. 

Tonho apagou o cigarro, Fábio ajeitou os óculos no rosto e ensaiou fazer uma pergunta, mas desistiu. Tomei coragem.

— Mas o que houve, chefa? — Ela parecia realmente preocupada.

— Nosso cliente é o Verdugo da cidade. Antes que me pergunte, Julio, o Verdugo é o vampiro mais poderoso e antigo do território, cuja função é punir quem pisa fora da linha e impedir que os humanos nos descubram. Nosso trabalho de limpeza faz parte desse sistema, então é como se ele fosse meu chefe. Se ele está envolvido, significa que estamos fudidos.

— E o que ele quer? — perguntou Tonho.

— Vamos descobrir quando chegar lá.

A viagem foi tensa. Ninguém falou uma palavra. Matilde seguiu nosso caminhão no carrão dela. Eu até esqueci da Naiara por algumas horas. Entramos no bairro da Pedreira e avançamos até uma rua estreita demais para o caminhão passar. Estacionamos e continuamos a pé. Passamos por um canal e seguimos Matilde por um beco escuro. As casas de madeira ao redor estavam trancadas. A sensação de insegurança era alta. No final da rua, uma figura bizarra nos esperava. Seus olhos cintilavam como bitucas de cigarro no meio de sombras. Quando vi o rosto deformado dele, senti vontade de vomitar.

— Onde está Augustus? — perguntou Matilde. O vampiro monstruoso, terrivelmente pálido, apontou pra dentro de uma casa. Entramos. Senti um cheiro que misturava carniça com pneu queimado. A porta da frente foi arrombada e o interior tinha sinais de luta. Tudo quebrado. Vi marcas de bala pelas paredes também. No centro da sala, um homem negro de quase dois metros olhava pro chão, pensativo. Ele usava um terno cinzento que parecia bem caro. Matilde se ajoelhou. Fizemos a mesma coisa.

— Mestre. — foi só o que ela disse. O Verdugo tinha uma presença tão forte que eu não conseguia olhá-lo no rosto.

— Matilde, sinto muito. Arrancaram o coração de Augustus.

Ela se levantou, entrou no outro cômodo e gritou. Antes que eu entendesse o que estava acontecendo, Matilde voltou e nos mandou limpar tudo. Entramos no quarto e vimos um corpo carbonizado aos pés da cama. Era dele que vinha o cheiro. Foi difícil colocar tudo dentro de um único saco. Ele se desfez em ossos, cinzas e uma substância gosmenta assim que o tocamos. É assim que um vampiro fica depois de morto.

Durante o serviço, ouvi Matilde conversar com o Guardião sobre um possível ataque de caçadores, e que estavam bem equipados. Ouvi a palavra lança-chamas. O que explicava vários móveis do quarto estarem queimados, mas estranhei o fato de o fogo não ter se espalhado. 

Quando me abaixei pra ver se tinha algo embaixo da cama, vi algo brilhando lá no fundo. Estiquei meu braço e me surpreendi com o que trouxe de volta: um brinco prateado em forma de crucifixo. Era igual ao de Naiara! 

— Achou mais algum pedaço dele aí, Julio? — perguntou Fábio, próximo da porta do quarto. Enfiei o brinco no bolso e respondi que não tinha nada lá. Quando terminamos de limpar, os vampiros já tinham ido embora, com exceção de Matilde, que esperava no carro. Jogamos os últimos sacos na caçamba e nos preparamos pra ir embora. Passei por ela. O rosto de Matilde tava inchado e os olhos cheio de… sangue.

Eu só precisava balançar a cabeça e seguir meu caminho, mas não me contive.

— Chefa, porque o coração?

— Só tenho palpites. É no coração que nosso sangue fica armazenado. Bom, os miseráveis que fizeram isso já estão mortos. Só não sabem ainda.

Minha espinha gelou e a boca ficou seca. 

Isso foi há três dias. Tô evitando me encontrar com a Naiara, doutor. A última foto que ela me mandou pelo zap, tava faltando o brinco da orelha esquerda. Tenho certeza que é a porra do brinco que eu encontrei. Eu gosto dela. Gosto de verdade. Mas tô com medo que a Matilde descubra que sei algo sobre o caso, sei lá. Ou que a Naiara descubra pra quem eu trabalho. Tô me sentindo entre a cruz e a espada. Não sei o que fazer. Não tenho conseguido dormir. Parece que nada de bom acontece na minha vida sem uma merda vir acompanhando.

Ainda acha que essas coisas são invenção da minha cabeça? Quem me dera. Seria muito melhor se eu tomasse essa pilulazinha e tudo sumisse. O que o senhor faria se estivesse no meu lugar, doutor?

Acabou o tempo. Beleza. Obrigado por nada.

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