por Regina Almeida
Ao mesmo tempo que escuto o galo cantar, sinto o cheiro do café. Permaneço de olhos fechados. Passo as mãos pelo lençol que está sob mim, sinto a sua maciez, a textura dos seus bordados, o perfume da oriza com a qual ele foi lavado. Me sinto totalmente desperta, mas percebo o quanto essa cegueira momentânea aguça os outros sentidos, então decido continuar de olhos cerrados pra me deixar levar pelos sons e cheiros ao meu redor.
Parece que ao mesmo tempo que comunico essa decisão pra mim mesma, outro alguém toma a sua própria decisão. Levanta, Lázaro! – diz alguém puxando o dedão do meu pé. Abro os olhos num susto e vejo um rapaz magrelo, sorridente e de expressão faceira, parado na frente da cama. Tá feliz demais pra ser uma visagem. É o Walzinho. Égua, me assustaste! – digo ainda me recuperando do susto. E por que essa felicidade toda? Viste um passarinho verde? Rindo, o Walzinho responde: Só o vô Bem-te-vi quando eu tava chegando. Ele foi comprar pão.
Sem noção do tempo, pergunto: Chegaste agora? Mas que horas são? Fazendo cócegas nos meus pés, ele responde: Tá cedo! Mas já tá bom de dormir. A vó Elda pediu pra te chamar pra tomares café. Bora logo quié, e me deixa deitar um pouco aí. Nem bem levanto e ele se joga na cama. Se deita de lado, põe as mãos sob as bochechas e diz: Vou dar só um cochilinho, tá? Dez minutos só! E pronto. Dorme.
Desço os degraus da escada de acapu e vou olhando as fotos penduradas na parede. Do patamar, vejo a D. Elda na cozinha. Ela é uma senhora baixinha e um pouco rechonchuda, com a pele da cor da farinha de tapioca e com um sorriso todo angelical. Ela tá com um vestido verde que combina com os seus olhos que praticamente somem no sorriso que não vem só da boca, mas do rosto inteiro.
Vem tomar café, minha filha! Tens que te alimentar direito porque saco vazio não fica em pé! E essas saboneteiras? Ela pergunta e se aproxima pra apertar com o dedo indicador o espaço entre a minha clavícula e o meu pescoço, o que me faz rir. Ela passa a mão na minha cabeça, me dá um tapinha nas costas e aponta a cadeira.
Me sento à mesa e escuto o barulho de passos acompanhados de uma música assobiada que mais parece o canto de um pássaro. Na porta da cozinha, que dá pro corredor externo, surge um senhor da cor de um grão de café. Ele tá vestido todo de branco, com um cinto preto e um chapéu panamá. Vem segurando um saco de pão quentinho. É o velho Bem-te-vi.
Ele tira o chapéu e diz: Bom dia, flores do meu dia! Me dá um sorriso de canto de boca acompanhado de uma piscadela, pendura o chapéu na parede, deixa o saco de pão sobre a mesa e se encosta inclinado na porta com os braços cruzados.
Nem sinto tanta fome, mas os cheiros do café que acabou de ser feito e do pão que acabou de sair do forno são convidativos. Passo a manteiga no pão e ela vai se espalhando, derretendo com a quentura dele e do sol que começa a entrar na cozinha.
A luz da manhã vinda de fora reflete a cor vermelha do piso São Caetano e deixa o cômodo todo num alaranjado aconchegante. A essa ambiência, une-se o barulho da chuva fina, dessas que caem o dia inteiro no dito inverno amazônico de Belém e que sempre me fazem achar que alguém lá por cima esqueceu alguma torneira pingando.
Ainda tô degustando o meu pãozinho com manteiga e café com leite, quando a D. Elda pergunta: O que vocês vão querer comer no almoço? E na janta? Acho engraçado pensar no que eu gostaria de comer tantas horas depois, mas a primeira coisa que me vem à cabeça é a lembrança do cheiro de um prato tão simples, mas que nas mãos da D. Elda sempre vira algo que julgo digno de deuses. Tão logo lembro desse cheiro, digo de pronto: Picadinho! Ela, que não parava quieta um instante sequer, abre logo a geladeira em busca da carne pra começar os preparativos da refeição.
Será que um dia consigo fazer um picadinho igual ao seu? – pergunto e ela responde: Vem aqui me ajudar! É fazendo que se aprende. Enquanto nós duas estamos na bancada cortando temperos, o velho Bem-te-vi nos observa e toma o seu café. Walzinho vem descendo a escada, liga o rádio da cozinha e se une a nós duas no preparo do almoço. Ele vai fazer o arroz e o feijão.
Esse ato tão simples e rotineiro me parece com a execução de uma peça musical por uma orquestra. Somos regidos pela D. Elda que, num sinal, indica a entrada do solista: Bem-te-vi, vem moer a carne! Num trabalho de cooperação, tudo fica pronto rápido, então damos uma pausa pro próximo compasso.
Nos sentamos à mesa e o assunto logo passa a ser as peripécias do Walzinho. Esse menino só apronta! Molho todas as roupas dele pra ver se ele não sai, mas quando vejo, já foi! – diz a D. Elda num tom mais de gracejo do que de reprovação. Só tamanho e safadeza esse Walzinho – diz o velho Bem-te-vi.
Elda se levanta, sai da cozinha e volta com uma caixa. Dentro, um monte de fotos. Numa delas, reconheço o Walzinho no meio de um bando de meninos com o mesmo corte cuia nos cabelos. Parece que são todos iguais, mas o Walzinho é fácil de ser reconhecido porque a expressão dele é a mais faceira e a mais cínica, como se estivesse sempre rindo por lembrar de uma piada ou por pensar na próxima travessura.
É incrível como uma fotografia, um simples pedaço de papel, se torna algo tão mágico. Adoro observar os registros de outras épocas, mesmo quando neles há pessoas que não conheço. Gosto de analisar suas expressões, de imaginar o porquê dos sorrisos. Gosto de ver suas roupas e seus cortes de cabelo, muitas das vezes irreverentes. Mais interessante ainda é conhecer essas pessoas através de alguém que te conta as histórias por trás do registro. Nesse momento, esse alguém é a D. Elda.
No meio de tantas histórias, tenho a ideia de tirar uma foto desse instante reservado à lembrança de lembranças. Reforço a ideia argumentando que é muito raro estarmos os quatro juntos. Todos gostam da ideia, menos o velho Bem-te-vi que não é lá muito chegado a ser fotografado. Mas ele aceita só pra agradar a D. Elda, como sempre. Walzinho vai correndo atrás de um amigo fotógrafo que mora no mesmo quarteirão.
Pra esperar o Walzinho, vamos pra a sala e sentamos no sofá. Eu, entre a D. Elda e o velho Bem-te-vi. Sinto uma saudade, mas não sei bem de quê. Não sei se esse sentimento surge com o cheiro de jasmim dela ou com o cheiro de roupa limpa dele. Pegando nas mãos dos dois, digo, num impulso, como se as palavras tivessem vontade própria: Vocês serão sempre lembrados com muito carinho! Ela ri com o seu jeito sempre meigo e ele com o seu sorriso de canto de boca. Ele parece querer dizer algo, mas, se quer, se contém e dá apenas uns tapinhas nas minhas costas.
Walzinho volta com um rapaz tão magro quanto ele. Carregando uma câmera no pescoço, ele diz: Olá, D. Elda! Olá, seu Raimundo! Demoro pra lembrar que o “seu Raimundo” é o velho Bem-te-vi. O rapaz fotógrafo nos posiciona pra foto, um do lado do outro: velho Bem-te-vi, Walzinho, eu e D. Elda. Numa mania de sempre falar enquanto todo mundo tá com seu sorriso pronto pra foto, Walzinho vira pra mim e diz: Ei! Vais ser muito feliz! Então digo: Acho que darias um ótimo pai! Ele dá uma gargalhada, dessas que se joga a cabeça pra trás, como se tivesse ouvido algo de muito absurdo ou impossível. Rio da gargalhada dele, olho pra câmera e vejo a luz forte do flash.
Sempre fecho os olhos com essa luz. Abro os olhos devagar e vejo tudo embaçado. Tô um pouco zonza e uma luz forte bate no meu rosto. É a luz do sol. Percebo que tô deitada num sofá e na minha frente tá o Walzinho que diz rindo: Levanta, Lázaro! É um Walzinho mais velho. Ainda tô meio zonza e parece que tudo tá rodando. Só aos poucos minha visão fica normal e as coisas param de girar.
Olho de novo pro Walzinho e digo: Pai, lembra que uma vez o senhor perguntou se tinha sido um bom pai? Eu não poderia ter tido pai melhor! Nos abraçamos com um abraço forte e demorado. Seu perfume é uma mistura de jasmim com cheiro de roupa limpa. Quando ele me solta, vejo a D. Elda e o velho Bem-te-vi em preto e branco, emoldurados na parede da sala de casa. Digo mentalmente pra eles: E vocês aí, não se esqueçam que serão sempre lembrados com muito carinho!
Walzinho, pra desviar do assunto e não me deixar perceber seus olhos marejados, me pergunta: O que achas da gente comer um picadinho?
Àqueles que vieram antes de mim.
Em especial, à Dona Elda e ao Velho Bem-te-vi, meus bisavós que se foram quando eu era muito pequena, mas que deixaram marcas profundas na minha memória, sejam elas reais ou criadas.
À filha deles, vó Regina. Ela não foi citada aqui, se foi antes que eu chegasse, mas está presente em tudo.
Ao filho dela, Preto, chamado de Walzinho pela Dona Elda e de pai por mim. O responsável por me fornecer linhas para alinhavar lembranças que não vivi, mas que fazem parte da minha memória.