Por Marina Luiza
Naquele dia, Sara acordou triste como nunca em vida. Teve medo, teve raiva e uma angústia tão grande que não cabia em lugar algum. Queria chorar, mas as lágrimas não vinham; queria gritar, mas não conseguia; restou apenas o peso daqueles sentimentos que, sem vazão, corriam completamente fora de seu controle. Sara queria sua casa, deitar na cama nova, se cobrir com seu novo cobertor azul e se perder naquele oceano de pano. Talvez ligar? Não, muito desesperada, uma mensagem seria melhor. Perguntando se estaria tudo bem e, dependendo da resposta, faria um convite casual. Assim como quem não quer nada, querendo tudo, nas entrelinhas de um “vamos tomar um vinho”. E seria perfeito. Um dia inesquecível. E se pudesse, Sara faria tudo novamente. Levantaria, tomaria um banho relaxante, com os seus sabonetes mais cheirosos, colocaria seu pijama mais confortável, sem roupa de baixo, sentaria no sofá, ligaria a televisão no canal de filmes, abriria um pacote de biscoitos, um refrigerante gelado, olharia bem o sol, se tivesse sol, mas se o tempo fosse de chuva estaria tudo bem também. E estaria tudo bem. Ela poderia refazer todos os seus passos até antes de começar a dar tudo errado. E ela os refez assim que abriu os olhos para sua indubitável morte.
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Infinitas vezes sobre aquela mesa, as pessoas passavam. Magras, gordas, altas, baixas, pretas, brancas, descendentes de todas as etnias, filhos e filhas, avós e avôs. Com o passar do tempo, Eduardo se acostumou. No início era difícil recebê-las e vê-las, mas principalmente tocá-las. Era um trabalho ingrato, mas necessário. Eduardo era pobre e nenhuma loja pagava tão bem quanto aquela funerária. O nome chegava a dar arrepios e ele só o pronunciava quando era muito pressionado. Certa vez, uma prima perguntou e, automaticamente, um pedaço de carne se instalou estrategicamente na garganta dele. Eduardo tossiu até sua tia intervir com um grande copo d’água. Em outra ocasião, estava prestes a marcar um encontro quando foi perguntado sobre o trabalho. Ficou paralisado e ali descobriu que talvez nunca mais fosse possível ter um relacionamento sincero. Seu compromisso era com a sua própria sobrevivência, precisava pagar uma dívida que fizera com um empreendimento. Eduardo tinha comprado vários conjuntos de roupas da Indonésia que chegaram devoradas por traças. A loja sumiu; Eduardo não sabia falar nenhuma língua diferente do português sem um tradutor online, então não conseguiu encontrar a tal loja sozinho. Tinha gastado todo o dinheiro de uma restituição e quando o aluguel chegou junto das outras contas, Eduardo teve a brilhante ideia de acionar um agiota. Acabou com uma dívida 3 vezes maior e várias ameaças. Fugiu e na casa da mãe só foi permitido ficar se arranjasse um trabalho. A funerária está contratando, disse ela, e assim, a sorte encontrou Eduardo, com uma gostosa e cínica gargalhada.
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Já era o segundo dia em que Sara ia e vinha. Nunca 48 horas foram tão longas em sua vida. A cada passo reconstruído, uma nova angústia aparecia. Ela fechava os olhos e estava em casa, seu abrigo e fortaleza, mas não havia conforto. Quando aquele lugar tinha ficado tão hostil? Sara juntava essa a uma lista de outras perguntas. A principal delas era: como tinha morrido? Ou melhor: pelas mãos de quem? Ela queria encontrar pistas, algum mínimo detalhe perdido nas suas lembranças, pois certamente fora alguém. Um ladrão, um bosta estuprador, um serial killer, as possibilidades eram muitas. Qualquer flash daquele dia podia ser o suficiente e ela conseguiria descansar, finalmente, depois de ter sua vingança, claro.
Ela precisava desesperadamente saber, mas quando chegava perto do momento final tudo ficava embaçado, um som de vozes distantes, o mundo girava e, por não conseguir se fixar ali, ela se afastava. Uma frustração enorme a consumia como um pavio de vela. Esperar a polícia, então se tornou sua maior esperança. Ela iria seguir com a investigação a todo custo, iria ajudar de qualquer jeito. Poderia começar naquele instante, indo atrás de algum sensitivo. Ela iria sair, encontrar alguém, um médium como aqueles que apareciam na TV. Ela olhava a porta e um aperto a segurava, uma sensação quase como um soco num estômago que já apodrecia no chão. Ela não entendia. Estava presa naquele lugar? Mas ela não se sentia como um daqueles fantasmas que arrastam um longo pano branco ao som fúnebre de um piano antigo; ela queria fazer mais, ela podia fazer. Ela seria um espírito da vingança, furioso e indomável. Mas Sara estava confusa e, no meio dessa grande e enorme confusão, eles chegaram.
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Aquela morte havia sido exposta ao extremo, levantado muitas discussões, teorias, revoltas e campanhas. Os repórteres estavam por toda parte, fazendo questão de registrar as noites em claro dos entes queridos que ficaram. O resultado foi um pedido desesperado da mãe da jovem para que sua filha pudesse ter o seu descanso final, o qual ela não estava podendo desfrutar depois de morta. Eduardo viu curioso ela chegar, a mãe acompanhando tudo de perto até a porta da sala de tratamento. Aqui é trabalho nosso, tá? Vamos acertar os valores tomando um café, disse Seu Lourival, o dono da funerária. A gente não pode nem se dar ao luxo de viver o luto da própria filha, precisa ficar abrindo a carteira todo tempo. Aquelas palavras da mãe atingiram em cheio Eduardo que, com um aperto no peito, se pôs de um lado da maca enquanto o idoso Serafino se pôs do outro, dizendo baixinho: Vamo Duda, daqui a pouco a maquiadora chega. Esse serviço precisa ser rápido, estão pagando o dobro pro patrão. Jennyfer, a maquiadora, sempre demorava muito, principalmente quando eram mulheres. Ela pintava as bocas e as bochechas delas como se fossem grandes amigas. Eduardo tinha calafrios só de pensar nessa empatia toda pelas defuntas. No meio dos seus pensamentos, Eduardo sentiu um gelar da cabeça aos pés quando a voz melancólica de Jennyfer encheu a sala. O trabalho ainda não tinha sido concluído, mas a maquiadora já estava ali, lamentando a “pobre jovem que deu em todos os jornais”.
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Sara abriu os olhos sem enxergar. Já não estava em casa e tentou reconhecer o lugar. Seria o famigerado céu? Não, isso é pra quem acredita. Sara sempre teve uma relação distante com qualquer religião. Agora, em morte, sabia que existia alguma coisa, mas nenhum santo ou anjo apareceu para buscá-la. Então aqui seria o inferno? Um grande vazio se fez presente naquele lugar que agora se mostrava em cores. O metálico era predominante, o marrom também. Havia flores. Sara sentiu o cheiro. Mas pode ter sido outra lembrança. Agora elas não vinham tanto. O ciclo se quebrou. Mas Sara não estava livre. Não é justo. Sara reconheceu a voz da mãe. Estava ali em pé, fazendo carinho em um rosto que não era mais o da filha. Sara se resumia cada vez mais a pequenas emoções. Elas vinham, se instalavam e cumpriam seu papel de lembrar Sara que ainda havia questões a serem resolvidas. Quem foi? Sara gritou e, por algum motivo, uma pessoa ouviu.
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Apesar de fingir estar tudo bem, os ouvidos de Eduardo captaram aqueles sons e, contra sua vontade, traduziram em palavras a voz de alguém que não estava lá exatamente. Os calafrios subiram seu corpo e seus pelos imediatamente se arrepiaram. Eduardo fez vários sinais da cruz, mesmo não tendo muita fé nisso. Quem foi? Mais uma vez a voz ecoou pela sala. Severino já tinha ido embora; aquele velho nunca ficava até o fim. Jennyfer também não estava mais lá; sua prioridade era trabalhar e tentar aparecer nas câmeras. Assim que a van da emissora de TV partiu, ela subiu em sua moto. Eduardo foi o único que ficou em hora extra, para terminar o serviço urgente. Mas a que preço? Quando começava a se acostumar ao trabalho, essa nova habilidade surge. Ouvir pessoas mortas definitivamente não estava no contrato. Quem foi? Eduardo já não aguentava mais e, furioso, respondeu: Quem foi o quê? O que você quer, espírito? Eu tô trabalhando, inferno! Ao terminar de falar, o silêncio tomou conta do ambiente. Eduardo parecia sozinho novamente apesar de não estar.
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Sara e Eduardo não tinham nada em comum apesar da idade. Eles também não se conheciam, mas podiam ter ido ao mesmo bar na cidade nem tão pequena onde moravam. Eduardo viu a cara de Sara apenas depois de morta. Sara viu o rosto de Eduardo apenas depois de morrer. Naquele momento, dentro da sala mortuária eles se ouviam mas não conseguiam conversar. Por favor, eu só queria algumas respostas. Eu tô sozinha aqui. Mas Eduardo não queria ouvir apesar de Sara querer falar. Então ela gritava cada vez mais alto. Quem foi? Eduardo tentava se fechar cada vez mais. O trabalho estava quase pronto. Ele só queria sair dali, mas algo o fez parar. O jornal que estava em cima da mesa trazia uma notícia que fez Eduardo entender tudo. Chegou perto do caixão e, sem saber muito como fazer, mostrou ao cadáver o pedaço de papel cinza. Moça, as pessoas estão falando muito mesmo de você. Parece que não querem que você descanse. Você sofreu demais e deixou isso escrito. Lágrimas escorreram do rosto dos dois. Finalmente Sara sabia o que podia fazer.