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Serviço Essencial – Quarta noite

Então, doutor, onde paramos? Sim, eu tava na merda. Limpar os restos do Tonho fodeu a minha cabeça. Não consegui dormir. Toda vez que fechava os olhos eu via a cabeça dele em cima da cama. Tinha poucos meses que eu conhecia o cara, ele tinha um parafuso solto, mas era um de nós. Se isso aconteceu com ele, ninguém estava a salvo. Na noite seguinte não era a cabeça dele que enchia minha mente, era a minha, do Fábio, da Dinilza, da Naiara. Tive mini infartos toda vez que ouvia um gato andando no telhado ou um rato correndo na frente de casa. Trabalhar ficou insustentável. Eu ia por medo de morrer caso faltasse, mas suava frio enquanto tava dentro da empresa, ao alcance da Matilde.

Foi aí que resolvi ir atrás da Naiara, doutor. Fiquei matutando na minha cabeça o que ia fazer ao encontrar com ela, mas não tinha muito o que pensar. Naquele dia esperei por ela na saída da universidade. Fumei uns três cigarros, um atrás do outro. Não fumava assim desde a adolescência. Minha mão direita tremia sem controle. Quando ela finalmente apareceu, quase me engasguei com a fumaça. Ela tava linda. Tinha pintado o cabelo de preto e tava com uma jaqueta jeans por cima do vestido preto. Corri na direção dela de forma tão desajeitada que ela tomou um susto.

— Nai, precisamos conversar.

— Julio? Por que não respondeu minhas mensagens? — Ela entendeu meu desespero quando viu minha cara. 

Fomos até uma lanchonete bacana,dessas onde tem hambúrguer artesanal. Ela deve ter me achado magro, porque insistiu que eu comesse. Na real nem lembrava minha última refeição. 

— Desembucha.

Contei tudo. Desde o primeiro dia de trabalho até o assassinato do Tonho. Falei que tinha encontrado o brinco dela na casa do sanguessuga incinerado e que havia mentido sobre a doença. Ela segurou minhas mãos que ainda tremiam pra caramba. Os olhos dela tavam intensos. Parecia que ela queria tocar fogo em cada vampiro fodido da cidade.

— A gente precisa fugir daqui. Ir pra outra cidade, outro estado, país. Sei lá — eu tava apavorado.

— Não adianta. Eles iam nos perseguir e nos matar. A gente tem que lutar. Você não tá só nisso, Julio. Na realidade, já tamo nos preparando pra isso. — Ela deve ter achado engraçada minha cara de confusão, pois começou a sorrir. — Vou te apresentar meu irmão e o pessoal, mas primeiro você tem que comer.

Depois do lanche ela ligou pra alguém vir nos buscar. Esperamos mais ou menos uns vinte minutos na lanchonete quando dois entregadores de aplicativo encostaram as motos do lado de fora. 

— Vamos. — ela disse.

Saímos e Naiara me apresentou os dois rapazes. Eles deviam ter a minha idade, na casa dos vinte. Subimos nas motos e vazamos dali. A chuva caiu e o trânsito ficou uma merda. Como estávamos de moto, fomos nos enfiando por tudo quanto era brecha, até chegar na casa da Naiara. Tava cheio de motos estacionadas lá e alguns entregadores saíram com as mochilas nas costas fazendo uma saudação com o punho fechado no peito. Naiara e os dois que nos trouxeram responderam com o mesmo gesto antes deles subirem nas motos e partirem.

— Meu irmão montou uma dark kitchen aqui. Assim fica mais fácil de reunir a galera.

Quando entramos, tinha mais quatro motoboys sentados na sala, jogando cartas. A cozinha tava movimentada. Deu pra ver dois rapazes metendo ficha na produção de yakissobas. 

— Esse aí que é o sortudo, mana? — A voz era do Armando, que descia a escada segurando dois reservatórios de gasolina. Ele era careca e barbudo, um pouco acima do peso. Bem naquele estilo de motoqueiro. O colete de mototaxista fechava o pacote. Ele deixou a gasolina no chão e me deu um aperto de mão bem doloroso. — Então tu trabalha pros chupa-cu, né?

— Ele tá com a gente, Armando! — Naiara nos separou antes que ele quebrasse meus ossos.

— Bom, se a Naiara confia em ti, beleza. Mas eu quero informação em troca. E tu vai ter que participar da ação.

Fomos pro escritório dele, que ficava no andar de cima. Sentei numa cadeira de plástico enquanto ele se ajeitava na poltrona atrás da mesa. Naiara ficou em pé.

— Então, desembucha. Conta tudo o que tu sabe sobre os filhos da puta.

— Bom, eles são mortos vivos e não podem sair de dia…

— Putz, já vi que te enganaram, meu parceiro. Isso aí é tudo história pra boi dormir, pra nos fazer dar passos em falso e morrer na briga — Ele riu da cara de besta que eu fiz.

— Como assim?

— Os sanguessugas são tão vivos quanto nós. Eles são uma espécie de parasitas que evoluíram pra imitar os humanos, se infiltrar nas nossas civilizações e se alimentar dos fodidos que ninguém dá a mínima. Os maiores poderes deles são dinheiro e fake news. Eles até tem uma ressaca durante o dia, mas nada de queimar na luz do sol.

— Putz! — Fiquei embasbacado.

— Mas sim, eu quero saber dos endereços. Tu trabalhava limpando a merda deles, né? Onde a gente pode encontrar uns bostas desses?

Contei tudo o que sabia dos clientes que atendi. Eu tinha uns cinco endereços quentes, que sabia que eram toca de vampiros, além da Carmesim e da casa noturna onde eles se encontravam uma vez por ano. Armando me contou que foram eles quem mataram aquele vampiro, amigo da Matilde, pra roubar o coração dele.

— Quando a gente toma o sangue do coração dos chupas, ficamos mais fortes pra caçada. Menos a Nai, com ela é diferente.

Naiara, que ficou calada durante toda a conversa, sentou do meu lado e abriu a mão esquerda. Uma chama branca se acendeu em sua palma e os olhos dela brilharam como os olhos de Matilde, só que em vez de vermelho sangue a cor era dourada. 

— Ainda tenho um pouco de combustível sobrando da última vez.

— Então foi você que incinerou aquele vampiro. 

— Eles tem fobia a fogo, não sei por quê. Dei sorte de manifestar essa habilidade.

— Isso tudo é loucura. Vocês realmente acham que podem vencer na braba? Eles controlam a política, o crime, as empresas. Da feita que descobrirem quem somos nós, vão fazer todo mundo desaparecer com um comando!

Naiara e Armando me olharam fixamente, como se fosse eu quem tivesse enlouquecido. Ela pediu licença e me levou dali pro quarto dela. Armando voltou pro andar debaixo pra coordenar sua equipe.

Nós sentamos na cama e eu acendi um cigarro.

— Então quer dizer que vocês querem caçar os vampiros com um exército de motoboys. Nai, isso não vai dar certo. Matar um sozinho é uma coisa. Agora todos é impossível! — Ela tocou meu rosto e me beijou.

— Nós vimos nosso pai enlouquecer pouco a pouco depois que nossa mãe foi morta por um deles. A gente não vai desistir. Essa é a nossa vida — aquelas chamas novamente nos olhos dela — Júlio Com as informações que você pode conseguir pra gente, podemos evitar muitas mortes. 

Pois é, doutor. Nessa hora caiu a ficha. Eu era uma peça fundamental no plano deles. Nem consegui ficar zangado, sabia? Dava pra ver que ela realmente gostava de mim, mas isso era questão de vida ou morte. E eu já tava envolvido até os cabelos do saco nessa confusão. Ou eu topava virar um espião, arriscando me foder valendo, ou delatava a operação pra minha chefe e garantia minha vida.

Naquela noite dormi com a Naiara. Finalmente consegui pregar os olhos. Acho que foi o perfume dela que me acalmou, apesar de tudo. Não sonhei com morte, sangue nem nada. Tive um sono pesado e profundo. Acordei revigorado. Foi só olhar pra Naiara dormindo do meu lado que tomei a decisão fácil, fácil. Era hora de fazer churrasquinho de vampiro.

Tomei um banho e saí. Armando estava na frente da casa, me esperando.

— Ela gosta muito de ti, sabia? Não vai decepcionar minha irmã.

— Já me decidi. Não vou fugir da briga.

Dois motoboys chegaram, cada um carregando um galão de gasolina e levaram pra dentro.

— Além de rodar por tudo que é lugar, ser entregador de aplicativo facilita comprar esse monte de gasolina sem levantar suspeitas. — e riu. Realmente o cara era esperto. Me despedi e segui viagem. 

Agora só faltava incluir o Fábio e a Dinilza no esquema. Liguei pros dois e marquei na minha casa. Quando chegaram, expliquei que não queria terminar como o Tonho e botar um fim na Matilde era o único jeito de a gente ficar livres.

— Tu é doido, é? — Fábio arregalou os olhos — A gente demorou umas três horas pra limpar os pedaços do Tonho e tu já quer que a gente limpe os teus?

— Fábio, o Julio tá certo. — Dinilza suava — A gente tá com os dias contados. A Matilde é paranóica. No primeiro deslize, ela arranca nossa cabeça. O jeito é agir antes dela.

Ele ficou sem palavras. Pareceu que o cérebro dele deu uma travada. Tomou uma golada da cerveja que eu tinha oferecido e baixou a cabeça.

— Eu sou muito jovem e bonito pra morrer.

— E então, qual o plano? — perguntou Dinilza.

Falei que a gente precisava de informação sobre os esconderijos dos outros vampiros da cidade. Se conseguíssemos isso, eu entraria em contato com os caçadores que detonaram o sanguessuga da outra noite e eles fariam o serviço sujo. 

— Só isso?

— Sim, mas temos que ser rápidos.

— A Matilde guarda uma agenda com informações sobre os clientes num cofre na Carmesim. Podemos assaltar ele durante o dia enquanto ela tá em casa dormindo. O problema é conseguir a senha.

— E como diabos vamos fazer isso? Explodindo o cofre? — Fábio finalmente falou. 

— Bom, meu pequeno é bom com fechaduras. Ele vai responder em liberdade a partir de sexta — respondeu Dinilza. Eu me espantei dela oferecer o filho assim, mas tava tão ansioso que nem botei dificuldade. É como dizem: tempos desesperados pedem medidas desesperadas. 

Acertamos que sábado seria o dia do roubo. Repassei as informações pra Naiara e ela me assegurou que no domingo os ataques teriam início. Os dias que seguiram foram barra pesada. Parecia que tinha uma arma apontada pra minha nuca o tempo todo. Quando eu chegava no trabalho, tentava agir o mais normal possível, mas a tensão era demais. Acho que a Matilde só não desconfiou do nosso comportamento por pensar que estávamos com medo pela morte do Tonho. Cada risco no calendário era um lembrete do tudo ou nada. Mas eu tava animado. Tínhamos chance de vencer. Era só pegar a agenda e deixar os profissionais trabalharem.

Não dormi nada de sexta pra sábado. Quando o alarme tocou às cinco e meia da manhã recebi um zap do Fábio, confirmando que o carro da Matilde tinha saído da empresa. Saí sem comer nem tomar banho. Encontrei com a Dinilza na esquina do beco da morte. O filho dela, Carlos, era um rapaz mais alto que eu e bem magro. Tinha um talho na bochecha. Ele só me cumprimentou e não abriu mais a boca. Estávamos todos apreensivos. Olhei as horas. Quinze pras sete.

— Bora.

Andamos apressados, olhando os arredores o tempo todo. O sol já tava bem forte no céu. Chegamos na empresa e abrimos o portão. O Conde dormia na casinha dele sem a coleira. À primeira vista achei que ele não tinha acordado, mas assim que o desliguei o alarme, ele latiu, já atrás de nós. O dog estava com os olhos vermelhos e rosnava pro visitante.

— Calma, rapaz. Amigo. — Fui em direção ao Conde.

— O que tem de errado com os olhos dele? — perguntou o rapaz. O latido do Conde saiu como se ele fosse um pitbull. 

Me aproximei com cuidado e comecei a fazer carinho no cachorro. Pedi que Dinilza levasse o filho devagar pra dentro do galpão de uma vez. Conde ainda rosnava, mas parecia ter se conformado com os meus carinhos.

— Isso, garoto. Relaxa que quando tudo terminar, vou te levar pra morar comigo e com a Naiara. — Continuei fazendo carinho nele, mas o sol esquentou de repente. Quando olhei pra cima, vi que o desgraçado tava no meio do céu. Olhei o relógio e já era meio dia! Aquele cachorro é um sacana mesmo, doutor. Não pode dar brecha que ele já te mete na hipnose. Corri pra dentro da empresa, pensando que já tava todo mundo morto, mas quando cheguei no escritório, Dinilza e Carlos acabavam de fechar o cofre.

— Demorou pra cacete, mas conseguimos! — Dinilza balançou a agenda vermelha em uma das mãos. — Bora pegar o beco!

Colocamos tudo nos devidos lugares e saímos afobados. Pensei em fazer um último cafuné no Conde, mas decidi não arriscar. Reativamos o alarme e corremos até um posto de gasolina depois da esquina.

— Porra, mas e as câmeras? — Dei com a mão na testa.

— Depois de amanhã não vai mais fazer diferença. Toma, agora entrega pro teu contato. Vamos embora pro interior. Acho melhor tu fazer o mesmo, amigo — Dinilza me entregou a agenda e apertou minha mão.

— Vai dar tudo certo — falei, tentando sorrir.

— Já deu.

Seguimos nossos caminhos. Não perdi tempo e fui encontrar com Naiara. Mal entreguei a agenda pra ela e já fui pro banheiro dar um cago de tão nervoso que tava. Tomei um belo banho e almoçamos juntos.

— Vou mandar a foto dos endereços pro Armando. Ele já tá preparando a logística com o pessoal. Você é fera, Julio! — ela me deu um beijo tão quente que pensei em tirar logo a roupa pra comemorar, mas me contive.

— Tenho que fazer uma coisa, Nai. Depois eu volto.

E vim correndo direto pra consulta com o senhor. Tô muito animado, doutor. Talvez a gente tenha uma chance de sair dessa vivos. Vai ser foda, mas pelo menos vamos enfrentar esses porras de frente. Eu sei que o senhor não acredita em nada dessa história, mas se tudo der certo, nem vai precisar se preocupar. Parece difícil acreditar que tive coragem de roubar minha chefe. Nunca pensei que esse dia chegaria. Bom, agora tenho que voltar e me preparar. Amanhã vai ser foda. Melhor o senhor nem sair de casa. Talvez a cidade pegue fogo, literalmente.

Até a próxima, doutor. Fica na paz.

 

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