Boa tarde, doutor. Eu também não achei que voltaria aqui, mas a vida é assim, né? As últimas semanas me deram muito o que pensar e percebi que penso melhor quando venho conversar com o senhor. O remédio? Parei. Acho que já estou me acostumando com essa vida. Não posso depender dele pra sempre. Preciso estar cem por cento atento se quiser continuar coerente ou… vivo.
Naiara? Eu encontrei uma boa desculpa pouco depois que saí daqui. Disse que tinha pegado a maldita. Pelo menos quinze dias de isolamento ou um pouco mais se os sintomas continuassem. Ela engoliu. Leva essas recomendações médicas bem a sério. Inclusive, doutor, desde que comecei a trabalhar nunca mais nem espirrei. Os poderes curativos do sangue da chefa são do caralho mesmo. O foda é que não dá pra pegar atestado de jeito nenhum. Temos que estar completamente disponíveis e funcionais pro trabalho. Se o resto dos patrões tivessem acesso a essa parada, pode apostar que dariam um jeito de trabalharmos trinta dias por mês sem parar. O mundo não pode descobrir sobre os vampiros. Não pode.
Nesse tempo que passei sem ver Naiara consegui colocar as coisas em perspectiva. A poeira não baixou, as coisas ainda estão tensas, mas pelo menos tô com a cabeça funcionando. Ainda mais depois de toda a situação com o Tonho. Naquela noite, ele simplesmente não apareceu pra trabalhar. Eu e o Fábio esperamos até meia noite, mas as coletas estavam se acumulando rápido e nenhum de nós sabia dirigir o caminhão. Estávamos começando a ficar nervosos quando Dinilza apareceu no pátio.
— A chefa mandou eu levar vocês hoje. Pelo visto o Tonho sumiu da face da terra.
Ela foi rápida. Pulou pra dentro da cabine e começou a ajustar o banco e os retrovisores. Puxou todo o cabelo pra trás e amarrou com um elástico vermelho. Eu e Fábio nos olhamos e subimos no caminhão. Por ser baixinha, teve que levantar o banco quase um palmo. Parecia uma criança rabugenta ao dar partida no motor.
Diferente de Tonho, que era calado, Dinilza se mostrou bem extrovertida. Conversamos bastante sobre futebol e sobre a vida amorosa do Fábio, que andava um pouco melhor que a minha. Ele brigou com o namorado, que também é o baterista da banda dele, o que deixou o clima esquisito na hora dos ensaios.
— A gente tá dando um tempo dos shows por conta disso. Não dá pra ensaiar se o Beto nem olha na minha cara.
— Faz sentido. Eu desisti desse negócio de amor há um tempão. E ninguém aguenta minha rotina por muito tempo por conta do meu menino. — Dinilza explicou pra gente que tem um filho preso e acaba dedicando toda a atenção e recursos pra tentar resolver a situação dele. Segundo ela, ele é inocente. — Mas vai dar certo. O novo advogado não é que nem os antigos que só queriam comer dinheiro. Esse pelo menos dá resultados.
As coletas foram rápidas. A maioria foi apenas serviço básico de limpeza, algumas manchas de sangue, mas sem cadáveres. Desde que aquele vampiro foi tostado no próprio covil, o resto dos sanguessugas tá pianinho. Ao amanhecer, chegamos na Carmesim e incineramos os panos de chão sujos, as luvas e nossas botas, que podiam conter algum resíduo suspeito. Não levou mais que uma hora.
— Como eu cobri o Tonho, não vou ficar hoje não. Mas a chefa quer que vocês vão lá na casa dele. Ele não atendeu o telefone.
— Bora lá com a gente, Dinilza. O Tonho é um de nós. Vai que ele teve um derrame e tá caído no chão de cara no próprio mijo.
— Pior né? Ele já tá ficando velho — concordou Fábio com um sorriso sacana. Dinilza coçou a cabeça e concordou em ir.
Tonho morava próximo do final da linha do Icuí. Tivemos que pegar dois bondes pra chegar lá porque era contramão da empresa. Como de costume, o motorista furou a parada e ficamos mais de meia hora aguardando o próximo. Aqueles pequenos estresses acabaram sendo um alívio. Quase me senti uma pessoa normal. Passamos o trajeto todo imaginando o que teria acontecido com o velho. Uma bebedeira? Não, ele não bebia. Teria sido assaltado ou levado uma surra? Díficil. Ninguém em sã consciência olha pro Tonho e continua andando no mesmo lado da calçada. Não chegamos a nenhuma conclusão.
A casa dele ficava próximo da parada, numa vila em frente à UPA. Pra nossa surpresa, encontramos ele na calçada, carregando uma bolsa e largando ela no porta malas do Fiat Uno. Ele revirou os olhos quando viu a gente chegando.
— Tão fazendo o que aqui?
— Viemos saber se tu tava vivo. Tu nunca falta, nem nada. — Disse Fábio. Tonho nos deu as costas e fechou o porta-malas. Voltou pra dentro de casa, ignorando nossa presença. Fui entrando atrás dele.
— Sim, mano. Não vai falar nada não? — eu já estava impaciente. Parei no meio da sala, entre a televisão e o sofá, e cruzei os braços, esperando uma resposta.
— Não devo satisfação pra nenhum de vocês. Se a Matilde tá enchendo o saco, ela pode descontar do meu salário.
Foi quando vi a variedade de armas de fogo espalhadas numa mesa da cozinha. Tinha três oitão, cartucheira e uma caralhada de bala.
— Que porra é essa? — Dinilza gritou, atrás de mim — Tá ficando maluco, Tonho? Vai invadir uma boca por acaso?
O silêncio de Tonho me gelou a espinha. Pelo visto era aquilo mesmo. Não esqueço o jeito que ele olhou pra mim. Os olhos eram como fogueiras. Pareciam mais perigosos que as armas que ele guardava na bolsa. Naquele momento percebemos que tinha algo de muito errado com ele. Saímos da casa e o seguimos até o carro. Antes que o Tonho pudesse falar alguma coisa, abri a porta do passageiro e me enfiei lá dentro.
— Sai. — Disse ele, com a voz rouca. Não me movi. Para a surpresa do velho, Dinilza e Fábio entraram pelas portas de trás e botaram os cintos — Agora pronto.
— Não vai abrir o jogo? — Fábio botou a cabeça pra fora pela janela.
— Hoje vou matar algumas pessoas. É melhor vocês fingirem que não me viram. — Meu olhar arregalado cruzou com as caretas de Fábio e Dinilza. Talvez nosso espírito de coleguismo tenha emergido na hora errada.
— Faz um tempo que trabalhamos juntos. Sabia que tu era meio burro, mas não suicida. Esse tanto de arma aqui dá pra um pequeno exército. — Dinilza estava impaciente.
— Eles pegaram minha filha. — Ficamos em silêncio. Os olhos de Tonho se encheram d’água.
— Merda. — disse Dinilza. E então ela abraçou o velho. Eu e Fábio ficamos parados. Dinilza nos olhou, enquanto parecia tomar a decisão. Deve ter lembrado do filho nessa hora. — Eu vou contigo.
Só pudemos concordar com a cabeça e permanecer no carro, enquanto Tonho dava a partida.
Tonho dirigiu em silêncio e seguimos a BR em direção à Marituba. Passamos pela estátua bizarra do “cristinho redentor”, famoso Chucky, e descemos uma avenida por alguns quilômetros. Paramos em frente a uma casa pequena com uns enfeites do natal passado. Tonho saiu do carro e fomos com ele. Uma senhora atendeu a porta. Ela tinha os cabelos grisalhos, mas parecia ser bem mais nova que o carrancudo do nosso lado.
— Cris, cadê a Paula? — os olhos dela estavam inchados. A mulher gaguejou antes de responder.
— Tá com aquele coisa ruim! Ontem veio aqui, quebrou a casa toda e disse que se eu chamasse a polícia eu ia ver!
— Fez bem em ter me chamado. Onde é que ele se esconde?
Tonho anotou o endereço e se despediu da ex-mulher. Os gestos dele se tornaram mais fluidos, como se tivesse tirado um peso das costas. Voltamos pro carro.
— Cara, não precisa dar uma de super-homem. Melhor ligar pra polícia ou, quem sabe, falar com a Matilde! — falei, quase gritando dentro do carro.
— Tarde demais. Se quiserem ir embora, peguem um bonde.
Engoli em seco. Tonho ficou uns instantes nos observando, pra ver se a gente mudava de ideia. Os outros dois estavam tensos, mas balançaram a cabeça, sinalizando pra mim. Não arredamos o pé.
O que ele tava disposto a fazer nem passa pela cabeça de gente normal. Ou será que passa? Se sequestrassem seus filhos, doutor, o senhor iria atrás dos caras? Ah, não tem filhos? Pois é, eu também não sei se faria o mesmo, talvez sim. De qualquer forma, quando cruzamos o “pedágio” e fomos entrando lá onde o judas perdeu as botas, abrimos os vidros. A gente não queria levar bala antes da hora. No final da invasão, tinha um casarão enorme. Era ali. Tonho desceu do carro e abriu o porta-malas, pegou duas pistolas, deu um revólver pra mim e pro Fábio e a cartucheira pra Dinilza. Nenhum de nós parecia muito confortável com aquilo nas mãos.
— A gente vai morrer — sussurrou Fábio.
— Não, o Sangue vai dar conta — respondeu Tonho, calmo.
O resto aconteceu como se eu tivesse no piloto automático. Tonho deu passos firmes até a porta da casa e a arrebentou com um chute. Entrou atirando e, depois do susto inicial, os três traficantes que contavam dinheiro começaram a revidar. Fomos envolvidos pelo tiroteio, que começou a arrancar pedaços da mobília pela sala, das janelas de madeira e das paredes rebocadas com gesso. Infelizmente eu não era bom com armas. Ao apertar o gatilho pela primeira vez, o revólver saiu voando da minha mão. Quando servi o exército, me chamavam de mão furada. Talvez por isso tenha sido dispensado.
Me joguei no chão e pus as mãos na cabeça. Eles estavam em três na sala, mas outros dois desceram as escadas. Um deles caiu morto na minha frente. O rosto dele ficou tão próximo do meu que se o cara ainda tivesse respirando eu ia sentir. Ouvi Fábio gritando de dor e caindo no chão. Dinilza e Tonho nada diziam, descarregando as balas em quem chegava. Depois da eternidade daqueles três minutos, os tiros pararam. Esperei um pouco antes de levantar, bem devagar.
O local tava destroçado, as paredes e corpos crivados de bala. Fábio tinha sido atingido na perna, mas parecia bem. Ajudei ele a se levantar. Dinilza apontava sua arma pra escada, enquanto Tonho pisava no peito de um rapaz caído no chão.
— Cadê minha filha, porra! — A pistola apontada pra testa dele.
— Para com isso! — Uma voz aguda veio da direção da escada. Vi uma garota de cabelo amarrado descendo, devia ter uns dezesseis anos. Ela segurava a barriga de grávida que quase não cabia no vestido florido. Tonho recuou imediatamente. A garota se apressou e se interpôs entre o jovem e a pistola.
— Paula, vim te levar de volta. Esse bostinha mexeu com a pessoa errada.
A garota cuspiu no chão. O olhar assassino dela era igual ao do pai.
— Eu não vou a lugar nenhum! Eu não vou criar essa criança sozinha que nem a mamãe fez!
Tonho recuou mais um passo. O rosto dele ficou pálido.
— Então… tu quis vir pra cá?
— Sim, seu monstro. A única coisa que tu sabes fazer é destruir a vida dos outros. Vai embora! — A garota pegou o revólver que eu deixei cair no chão e apontou pro pai. Ela não tremia, o rosto contorcido de raiva. Dava pra ver que as lágrimas que ela derramou naquela hora eram de ódio.
Os olhos do Tonho ficaram vermelhos. Por um momento pensei que ele fosse desabar. Ele esfregou as mãos no rosto e a inexpressividade padrão voltou.
— Acho que… entendi tudo errado — Foi só o que ele disse. Enquanto o seguimos até o carro, olhei pra trás e vi Paula ajudando o namorado a levantar e ambos chorando a morte dos companheiros. Eu só queria sair dali o mais rápido possível. Entramos no Uno e Tonho acelerou de volta à cidade. Nenhum de nós falou uma palavra até ele nos largar em uma parada de ônibus qualquer.
— Bom, isso foi uma merda. Vou dar um fim nesse carro e nas armas. Amanhã eu resolvo com a chefa. O crime tá sempre devendo os sanguessugas, uns favores devem abafar o caso. — Nunca tinha visto ele falar tanto. Depois de uma pausa, continuou — Vocês não estavam lá quando aconteceu. Obrigado.
— Puta que pariu, mano. A chefa vai te matar! — disse Fábio. A perna já tava praticamente curada. Tonho sorriu.
— Sinceramente, Fábio, eu tô cansado. Já vivi mais que o suficiente, fiz muita merda e pelo visto não tô mais entendendo esse mundo. Obrigado a todos vocês. — E se mandou.
As horas seguintes foram um inferno. Não consegui pregar os olhos. Acho que nenhum de nós conseguiu. Não sabíamos quem ia vir atrás da gente, se o crime ou os vampiros. Nada aconteceu. Quando cheguei pra trabalhar na noite seguinte, Matilde nos recebeu soturna.
— Aqui o endereço do próximo trabalho. Dinilza, você dirige.
O endereço era o mesmo da casa de Tonho. Eu quase desmaiei.
— Espero que vocês entendam o lugar de vocês. — Os olhos de Matilde eram como bolhas de sangue. Ela se trancou em sua sala e nos deixou. Saímos correndo, quase voando. Pegamos o caminhão e Dinilza pisou fundo no acelerador. Quando chegamos na casa de Tonho, a porta tava apenas encostada. A sala de estar toda quebrada. O quarto, cheio de sinais de luta e manchas de sangue. A cabeça dele em cima da cama. O resto espalhado no chão do banheiro. Vomitei. Dinilza soluçava e Fábio sentou no chão com as mãos na cabeça.
Mal conseguimos conversar durante o serviço agora. Dinilza substituiu o Tonho no caminhão e todos nós assumimos as funções dela na incineração. Do jeito que as coisas andam, não sei quanto tempo vou continuar vivo. Então tomei coragem pra me encontrar com a Naiara. Queria contar tudo pra ela. Fugir junto, sei lá. Mas provavelmente vão me encontrar em qualquer lugar. Por isso eu tomei uma decisão. Se o senhor achava que eu tava fudido até agora, não sabe da missa a metade…
Já acabou o tempo? Putz, doutor, não tem como eu ficar mais uma horinha não? Beleza então, vou agendar o retorno na recepção. Preciso falar sobre isso com alguém, mesmo que seja com o senhor. Então, até a próxima consulta. Se eu estiver vivo.